Para cada criança brasileira à espera de um lar, existem cinco famílias dispostas a adotar um filho ou uma filha. Se essa conta aparentemente não fecha, e se ainda há perto de 8 mil crianças aptas à adoção, é porque existem gargalos significativos para que os processos de adoção no país tenham andamento.

Há seis meses, a Agência Senado abordou o tema da adoção e mostrou as dificuldades burocráticas que fazem com que um processo de integração de uma criança ou adolescente a uma nova família possa levar até sete anos para ser concluído. Desde então, um novo projeto de lei foi apresentado ao Senado Federal, e ele ataca significativamente esses entraves.

Trata-se do PLS 223/2017, do senador Aécio Neves (PSDB-MG), que está sob responsabilidade da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). O texto promove diversas alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com o objetivo de facilitar e agilizar a adoção, dar mais segurança jurídica aos processos e reconhecer a importância da família adotiva para o atendimento dos melhores interesses dos jovens.

Na reportagem feita seis meses atrás, a Agência Senado também falou sobre sete outros projetos de lei que tratam do tema da adoção, tentando desfazer entraves burocráticos e inovar a legislação para agilizar os processos de categorias prioritárias de crianças e adotantes. Eles ainda tramitam no Senado, mas, em geral, trazem dispositivos também contidos no PLS 223/2017. Você pode ler a reportagem e saber mais sobre esses projetos aqui.

Para Walter Gomes de Sousa, supervisor de adoção da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal, a iniciativa pode ser revolucionária.

– Ouso dizer que é a proposta mais adequada apresentada nos últimos anos, porque ataca alguns pontos nevrálgicos. Ela atende aos anseios de todos que militam na área da infância e juventude.

O advogado Hugo Teles trabalha com o grupo de apoio à adoção Aconchego, que atua com a orientação de famílias e com a integração social e comunitária de jovens abrigados. Ele destaca que o principal sucesso da proposta é desemperrar os passos burocráticos mais minuciosos da adoção ao mesmo tempo que respeita as etapas sensíveis.

– O grande mérito do projeto é dar agilidade ao processo com responsabilidade. Estamos falando da vida de milhares de crianças. Ele é exitoso porque encurta alguns procedimentos pequenos

Destituição

O Cadastro Nacional de Adoção, mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e atualizado diariamente, registrava, ao final do mês de agosto, pouco mais de 7.900 crianças e adolescentes prontos para adoção nos abrigos de todo o Brasil. Ao mesmo tempo, são cerca de 40.900 famílias habilitadas para adotar.

O total de crianças e adolescentes inseridos no Cadastro se divide em duas categorias: os “vinculados”, que já estão associados a uma família adotiva e passando pelos trâmites que antecedem a formalização da adoção; e os “disponíveis”, que ainda aguardam na fila. Em consulta nesta terça-feira (5), os vinculados somavam 3.195 e os disponíveis, 4.770.

A proporção entre famílias habilitadas a adotar e o número de crianças cadastradas pode parecer um cenário favorável aos jovens, mas não é um retrato fiel da realidade. Na verdade, há mais de 55 mil crianças e adolescentes vivendo em instituições de acolhimento. A grande maioria deles, entretanto, ainda não pode ser inserida no Cadastro e não está na fila da adoção. Mesmo não identificados pelas estatísticas públicas do CNJ, eles brasileiros esperam por uma família tanto quanto aqueles cuja existência já é oficializada.

O que provoca esse período de indefinição é a necessidade de se concluir o processo de destituição do poder familiar, que é o desligamento da criança de sua família natural. As razões que podem levar um jovem para um abrigo são várias (histórico de abuso e violência ou dependência química no núcleo familiar, por exemplo), mas a legislação atual ainda privilegia a reinserção na família natural sobre qualquer outra medida.

Por isso, as autoridades judiciais precisam esgotar todas as medidas cabíveis nesse sentido antes de determinarem que o melhor passo é encaminhar o jovem para adoção. Essas medidas incluem reabilitação social da família e procura por parentes mais distantes. Elas podem levar anos e, não raro, demoram mais do que o processo de adoção em si. Durante esse período, a criança não pode voltar para sua casa antiga e nem procurar uma nova.

A primeira medida do projeto de lei é mudar esse entendimento, desfazendo a prioridade da reinserção e orientando a Justiça a agir de acordo com o “superior interesse” da criança ou do adolescente.

Walter Gomes de Sousa avalia que a lei atual “absolutizou” a família biológica e exige que se proceda à reintegração mesmo quando isso se mostra “contra-indicado”, em caso de ambientes muito hostis. Para ele, o projeto tem o mérito de colocar a família adotiva em pé de igualdade

– É razoável que [a criança] seja colocada no limbo jurídico, aguardando que a família biológica resolva os seus problemas, supere as suas crises? Não é. Você acaba colocando num plano superior o interesse dos adultos, em detrimento dos interesses das crianças e adolescentes. A proposta reabilita o valor da família adotiva.

Esse novo ângulo sobre o ECA não é unanimidade. O deputado Diego Garcia (PHS-PR) é relator do projeto de lei da Câmara dos Deputados que cria o Estatuto da Família (PL 6583/2013). Para ele, as novas regras para adoção são em geral positivas e merecem ser aprovadas. Porém, ele acredita que uma mudança interpretativa sobre a relação da criança com sua família biológica contribuiria para “fragilizar” os núcleos familiares – em especial os mais vulneráveis.

– Se não há políticas públicas que façam o acompanhamento dessa família, que deem atenção e orientação a ela, estamos tentando resolver um problema mas vamos ver outros tendo continuidade. A pergunta que temos que fazer para o Estado é se ele está cumprindo o seu papel. Entendo que é um remendo a retirada da excepcionalidade [antes] de esgotar todas as tentativas.

Preparo

Segundo um estudo feito em 2015 pelo CNJ, o tempo médio para a conclusão de adoções no Brasil varia muito entre as regiões. O Nordeste tem os processos mais ágeis, mas, de resto, não é incomum que se passem seis anos até a consolidação do novo vínculo familiar – isso após a conclusão da destituição da família biológica.

Levando em consideração que a maioria dos adotantes tem preferência por crianças de até seis anos de idade, isso significa dizer que, na maioria dos casos, uma família inicia a jornada rumo à adoção antes mesmo de seu (sua) futuro(a) filho(a) nascer.

Significa também que muitas crianças em idade preferencial para adoção envelhecem ao longo de todo esse tempo de espera e entram na pré-adolescência ou adolescência, quando as chances de conseguir um lar caem drasticamente

Além da destituição do poder familiar, uma etapa que leva tempo até ser concluída é a habilitação da família adotante. A lei exige que todos os indivíduos ou casais que desejem adotar passem por uma bateria de acompanhamentos sociais e cursos, além de se submeterem a verificação das suas condições sociais. Apenas concluído esse processo é que os adotantes ingressam no Cadastro Nacional e entram na fila por uma criança ou adolescente que atenda às características esperadas.

O advogado Hugo Teles tem dois filhos adotivos. Ele afirma que a conscientização necessária para levar adiante ambas as adoções foi construída ao longo de muitos contatos com outras famílias, por intermédio do grupo Aconchego, e do trabalho social envolvido na preparação.

Esse processo, explica ele, é importante para que os adotantes reconheçam e consolidem as suas expectativas. Também é possível que elas se expandam – Hugo e a esposa, brancos, são pais de duas crianças negras, decisão que originalmente não estava no horizonte deles mas surgiu de forma natural durante o processo. O importante, destaca ele, é abordar a própria situação de forma honesta.

– Quando falamos do perfil desejado, temos que ter cuidado e respeitar. Temos que lembrar que estamos falando da capacidade e do desejo das pessoas. Quem pretende constituir uma família por meio da adoção tem que ter muito claras duas coisas: o que quer e do que dá conta. Tem que ser muito bem pensado para que a gente evite a pior situação de todas, que é a desistência das adoções. Isso é terrível, principalmente para a criança, que sofre uma rejeição enorme

O PLS 223/2017 determina que os processos de habilitação para adoção sejam concluídos em até 240 dias – prazo que pode ser prorrogado por mais 60 a depender do caso. Isso representa uma redução que pode chegar a 85% do tempo médio de duração desses processos em algumas regiões do país.

Segundo os especialistas, é uma intenção alvissareira, porém pode ser um desafio instransponível. Isso porque as Varas da Infância e Juventude pelo Brasil já sofrem com falta de estrutura e recursos para cumprir esses requisitos da forma como são.

Walter Gomes de Sousa afirma que parâmetros concretos e bem definidos são importantes para dar um alento a quem está inserido no processo. No entanto, ele alerta que, sem uma destinação orçamentária mais robusta para as varas, cumprir as novas regras será inviável.

– As varas estão sucateadas, de pires na mão. Há varas sem magistrados constituídos, ou sem equipe multidisciplinar para assessorá-los. É necessário que a legislação garanta a celeridade, mas também que os meios para que isso ocorra sejam garantidos. É necessário equipar de maneira privilegiada as varas de todo o país.

O processo de habilitação para adoção é conduzido por profissionais especializados em psicologia, serviço social e outras áreas relevantes, que constituem equipes multidisciplinares. Eles também trabalham junto às crianças e adolescentes nos abrigos, preparando-as para começar uma nova vida em um novo lar.

Sem essas equipes, os processos emperram. O projeto de lei prevê que os juízes possam, em situações excepcionais, designar peritos ad hoc quando não houver equipes disponíveis, de modo a não interromper o andamento dos trabalhos. Walter teme que essas medidas se tornem regra e o problema real siga intocado.

Fila

Após a habilitação, o adotante é inserido no cadastro, entra na fila e há o trâmite do processo de adoção em si: a combinação com uma criança ou adolescente (a partir das características), o estágio de convivência e, sendo tudo isso bem-sucedido, a finalização.

Na reportagem de seis meses atrás, a Agência Senado conversou com o casal C. e F., moradores do Distrito Federal que aguardam na fila da adoção. Para eles, a habilitação demorou 29 meses. A etapa atual, que é o processo da adoção propriamente, já dura desde o início de 2016.

C. afirma que vê com bons olhos o estabelecimento de um prazo. Para ela, a experiência ensinou que ficar “no escuro” traz um desafio a mais para a experiência.

– É bom para as pessoas terem uma noção mais clara. Às vezes ela não sabe quando vai entrar no Cadastro. Essas averiguações e cursos são muito importantes e têm que ser feitos, mas o tempo é muito grande. Você fica fora do sistema e sem perspectiva de entrar.

Nos últimos meses o casal progrediu 77 posições na fila, de 299 para 222, mas eles não foram informados desse avanço. Segundo C., são os próprios postulantes à adoção que precisam ir à Vara da Infância (responsável por manter o cadastro local) para obterem atualizações quanto à situação da sua candidatura. As informações sobre a fila não são públicas.

– O único contato é o que a gente faz. A única coisa que eles orientam é frequentar as reuniões do grupo de apoio. O lado bom é que você perceber que muitas pessoas estão passando pelo mesmo processo, mas o lado ruim é a mesma coisa. Seria interessante receber atualizações sem precisar ir lá.

O projeto de lei em análise no Senado não cria para as varas a obrigação de atualizar periodicamente os adotantes, mas define um prazo também para a conclusão do estágio de convivência – 90 dias – e para o processo de adoção como um todo – 120 dias, prorrogável por igual período.

Prioridades

Devido às preferências expressadas por cada adotante, a fila da adoção não é uma linha reta para as crianças e adolescentes à espera. As características que cada família procura em um filho ou uma filha são distintas, mas alguns perfis encontram mais resistência do que outros.

A etnia, em si, não se apresenta como uma barreira tão grande. Segundo os dados coletados no final do mês de agosto, crianças e adolescentes brancos e negros dispõem, na média nacional, de proporção semelhante de famílias dispostas a adotá-los: são 15,3 adotantes para cada jovem negro e 13,8 para cada branco. Já os jovens declarados como pardos têm, em média 8,5 famílias à procura cada.

O obstáculo mais evidente é a idade: crianças de até 5 anos, em geral, encontram uma larga seleção de famílias dispostas a adotá-las. A partir do 6º ano de vida, porém, o número de candidatos despenca vertiginosamente. Adolescentes de 11 anos ou mais já são mais numerosos do que a quantidade de adotantes à procura.

O PLS 223/2017 oferece um instrumento para ajudar a melhorar a condição desses adolescentes que, em geral, têm muito menos perspectiva de deixarem o abrigo antes da maioridade. O apadrinhamento afetivo, prática já estimulada informalmente pelos grupos de apoio à adoção e pelas próprias instituições de acolhimento, pode ganhar respaldo legal caso o projeto seja aprovado.

Trata-se de uma espécie de “adoção social”. Nela, uma família, um indivíduo ou mesmo uma pessoa jurídica se responsabiliza pela integração do jovem à comunidade, financiando atividades extracurriculares, levando-o a eventos, tutelando-o em estudos e inserindo-o em círculos que colaborem para o seu desenvolvimento pessoal, intelectual e social. O jovem não deixa o abrigo nem se formaliza como filho, mas ganha uma “ponte” com o mundo exterior que pode fazer a diferença na sua vida.

Para Walter Gomes, da Vara da Infância, o apadrinhamento afetivo é uma forma de toda a sociedade participar da criação de um ser humano que, no futuro, será membro dela própria.

– São crianças e adolescentes que diuturnamente sofrem, sobretudo pela ruptura de vínculos com sua família biológica, e estão aguardando uma oportunidade. O apadrinhamento surge como uma oportunidade de amenizar esse sofrimento psíquico. Temos que convocar a sociedade a adentrar esse universo de defasagem afetiva.

Outra dimensão de dificuldade encontram as crianças que sofrem de alguma deficiência ou portam o vírus da Aids. Atualmente, menos de 5% dos adotantes cadastrados no Brasil estão dispostos a aceitar um filho ou uma filha que tenha testado positivo para o HIV. Já os jovens com deficiência mental, que perfazem quase 10% de todos os disponíveis para adoção, encaram uma proporção de menos de 2 famílias para cada um – a nível nacional.

O atual Estatuto da Criança e do Adolescente já garante prioridade de tramitação para os processos de adoção envolvendo esses casos. O PLS 223 expande esse tratamento privilegiado para jovens com todo tipo de necessidades específicas de saúde.

Quem também pode ganhar tratamento prioritário são grupos de irmãos. De acordo com o projeto, eles deverão ser adotados, quando possível sempre juntos, de modo a não desfazer o vínculo fraternal, que se desenvolve cedo. Os processos de adoção para famílias que estejam dispostas a acolher irmãos, portanto, também terão lugar prioritário na fila.

Gestantes

Outra inovação trazida pelo projeto de lei é a criação de um conjunto de regras e procedimentos para que mulheres gestantes que não tenham condição ou desejo de criar o bebê possam iniciar o processo de adoção, através da Vara da Infância e da Juventude, antes mesmo de darem à luz.

O deputado Diego Garcia, relator do Estatuto da Família, vê com bons olhos a ideia. Em sua avaliação, abrir essa via de forma segura para as mulheres pode diminuir a incidência de abortos no Brasil.

– É uma medida muito positiva, visto que você dá a essa mãe [a oportunidade] de não ter que se submeter a essa prática, que tira a vida da criança e traz consequências. [Também vai] contribuir para que a criança não seja depois abandonada, e tenha respaldo de uma família desde os primeiros dias da sua vida.

Para o advogado Hugo Teles, o ponto mais importante desse dispositivo é garantir o sigilo às gestantes que procurem as Varas para encaminhar a adoção – inclusive da própria família delas, se assim quiserem. Atualmente, segundo ele, as mulheres são “massacradas” com perguntas invasivas e precisam envolver muitas outras pessoas na decisão. Além do estigma social, essa perspectiva intimida e impede que muitas deem esse passo.

– Achamos que é uma questão essencial do direito da mulher [ela] manifestar a intenção de entrega da criança para adoção sem dar maiores detalhes da sua vida pessoal. Acreditamos que é um direito da gestante, nessa condição, manter o sigilo se for o seu desejo. É uma questão de preservação da própria intimidade.

Tramitação

O PLS 223/2017 ainda não tem relator da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). Caso seja aprovado por essa comissão, seguirá para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), que terá a palavra final sobre ele. Depois desses dois colegiados, ele já poderá seguir diretamente para a Câmara dos Deputados.