Panorama do transporte ferroviário revela uma história marcada pelo desenvolvimento e pela memória afetiva.
Dizem por aí que a maior estação do mundo é a boca do mineiro, porque é de lá que sai mais trem. As ferrovias estão tão arraigadas na cultura do Estado que, mesmo depois de ter quase desaparecido o transporte ferroviário de passageiros, o termo ainda está presente no cotidiano daqueles que habitam o território de Minas Gerais.
A referência a esse aspecto cultural está registrada no Houaiss. Dentre as nove acepções elencadas pelo dicionário de língua portuguesa, a sétima reflete o uso abrangente da palavra. Segundo o livro, o termo, advindo do uso informal e regionalista de Minas Gerais, é utilizado para se referir a “qualquer fato ou objeto; troço, treco, coisa”.
Essa relação também já foi eternizada em fotografias, canções e poemas. A poeta Adélia Prado, por exemplo, nascida na cidade de Divinópolis (Centro-Oeste), que possui, inclusive, relevante complexo ferroviário, diz assim: “Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica/Mas atravessa a noite, a madrugada, o dia/Atravessou minha vida/Virou só sentimento”.
Assim como nos versos, hoje, também na vida do ex-ferroviário Luiz Carlos da Silva Caetano, o trem se tornou apenas uma lembrança e o sentimento é de saudade.
Luiz Carlos se recorda que, quando criança, morador da Vila Carijós, situada no município de Conselheiro Lafaiete (Central), ao ouvir o apito da Maria Fumaça, corria para ver a máquina passar soltando vapor: “A gente ficava ali na beira da linha admirando e contando os vagões”.
Segundo ele, o passatempo preferido da infância acabou ensejando o desejo de um dia trabalhar no transporte ferroviário.
E ele o realizou aos 26 anos, quando ingressou no quadro de pessoal da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA), atuando na própria unidade do município, onde permaneceu por quase 19 anos, de 1979 a 1997. Luiz lavou máquinas, limpou valas e trocou muitos radiadores, trabalhando na oficina responsável pela manutenção dos trens.
“Era tão puxado que não sobrava tempo para viajar sobre os trilhos”, lembra. Apesar disso, o ofício lhe permitiu criar sua família com dignidade e lhe trouxe muitos amigos. Aposentado há 20 anos, Luiz Carlos lamenta o declínio das atividades do modal e afirma que, se tivesse uma oportunidade, regressaria ao “batente das linhas”.
O transporte ferroviário no Estado tem sido discutido na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), em eventos como o Debate Público – Minas de Volta aos Trilhos, em 2017, e o Fórum Técnico Mobilidade Urbana – Construindo Cidades Inteligentes, em 2013.
Em junho de 2018, a defesa da recuperação e expansão da rede ferroviária foi efetivada pela criação da Comissão Extraordinária Pró-Ferrovias Mineiras. A atuação da ALMG vai se dar em diversas frentes, incluindo a preservação da memória ferroviária.
De acordo com o presidente da comissão, deputado João Leite (PSDB), as ferrovias forjaram, ao longo de décadas, nossa cultura. “O trem chegou a Belo Horizonte em 1920 e, em 1931, foi criada a Rede Mineira de Viação. Com suas linhas de aço, as ferrovias transportaram as riquezas de Minas e forjaram a história de nosso Estado, desenvolvendo as cidades que eram cortadas por suas composições, criando uma forte cultura ferroviária influenciando a economia, o turismo, o trabalho e o sonho dos mineiros”, ressalta João leite.
Trens que constroem histórias
Quando chegou à Rede Ferroviária, aos 21 anos, em 1974, Raimundo Ezaquiel Pinto pensou que não completaria o segundo ano no serviço; 22 anos depois, quando se aposentou, também disse que, se fosse possível, teria permanecido “na ativa” por mais tempo.
Ele conta que, com a privatização das linhas férreas no fim da década de 1990, muitos profissionais se viram obrigados a se retirar devido à política de “enxugamento” promovida pelas empresas que assumiram as concessões do transporte.
“Cada trem que a gente fazia era uma história”, afirma Raimundo, que diz ter conduzido a milésima locomotiva montada no Brasil.
Ele se lembrou ainda da experiência de conduzir a Maria Fumaça 1424, quando foi transferido para Mariana. O trem, de caráter turístico, realizava o trajeto do município até Ouro Preto (ambos localizados na região Central).
“A maior dificuldade era manter o fogo vivo, pois, do contrário, a velocidade caía; fazia muito calor e vez ou outra uma faísca furava a roupa da gente”, lembra, pontuando que o processo era diferente das locomotivas a diesel, com as quais estava mais acostumado.
O ex-ferroviário lembra que o transporte de passageiros por meio dos trens de ferro movimentava as cidades. Ele afirma que viu Lafaiete crescer em torno da linha que integrava os diversos municípios da região.
Raimundo conta que fazia gosto encontrar um passageiro em especial, que levava na mala um antigo gravador, com o qual registrava o apito do trem.
“Ele colocava o equipamento para fora da janela e pedia para a gente apitar, aquilo era a vida dele”, enfatiza.
No balanço do trem – José Gomes Dinis morava de frente para os trilhos no bairro de Queluz, em Lafaiete. “Eu cheguei a morar em uma casa que, para sair da porta da sala, você tinha que olhar para os lados senão o trem te atropelava, eram só dois metros de distância da linha!”, comenta.
Apesar de ex-ferroviário, as linhas férreas atravessaram a vida de Dinis de muitas outras formas. Quem o embalava nas madrugadas frias do bairro era a locomotiva, às vezes, conduzida pelo próprio pai: “A noite que o trem não passava e não balançava a casa, a gente nem dormia direito”.
Outra memória afetiva que o homem de 64 anos guarda daquele tempo é a de suas viagens como passageiro. Como ele não se adaptou ao ofício de auxiliar de maquinista, que se dava em alternância de turnos, acabou ficando na Rede apenas dois anos.
As histórias sobre o Vera Cruz (trem de passageiros, considerado de luxo, que ligava as cidades do Rio de Janeiro, no estado fluminense, e de Belo Horizonte, em Minas) arrancam dele sorrisos, ao lembrar que, no vagão-restaurante, era possível tomar cerveja sem que o copo sequer tremesse.
Ele afirma que a viagem era muito mais confortável e segura do que a feita pela estrada, apesar de um pouco mais demorada. “Nunca vi acidente de trem”, ressalta.
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